Pessoas autuadas em flagrante relataram a magistrados, durante audiências de custódia, pelo menos 473 supostos casos de tortura e outros tipos de violência policial. Elas foram apresentadas a juízes em menos de 24 horas após a prisão, o que permitiu, em grande parte dos casos, a constatação de ferimentos e outras marcas de agressões.
Esse é um dos resultados do projeto Audiência de Custódia, difundido em todo o país pelo presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Ricardo Lewandowski,.
O principal objetivo do projeto é assegurar as garantias fundamentais do preso, como a integridade física, a legalidade da investigação, a ampla defesa e a presunção da inocência. Tanto que, nas audiências de custódia, geralmente a primeira pergunta feita pelo magistrado é para saber se o detento sofreu algum tipo de violência após a prisão em flagrante.
Os 473 relatos de agressão policial foram informados por defensorias públicas e tribunais de Justiça dos estados de São Paulo, Espírito Santo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, onde os casos estão sob investigação. Não estão incluídas nesse levantamento informações de outros 20 estados onde o projeto do CNJ também é executado, pois as informações destes estados ainda estão sendo contabilizadas. Isso sinaliza que o número de relatos de violência policial em audiências de custódia pode ser ainda maior.
Para o coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF) do CNJ, juiz Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi, “a experiência com as audiências de custódia está servindo para desnudar uma realidade subterrânea, e que não alcançava visibilidade formal e institucional, que é a violência decorrente de atos e procedimentos adotados pelo aparato de segurança pública do Estado, que, infelizmente, ainda cultua formas de agir totalmente desalinhadas da realidade inerente a um Estado Democrático de Direito”.
Entre os cinco estados que forneceram dados, São Paulo registrou o maior número de denúncias de presos. Foram 277 em um total de 9.532 audiências de custódia realizadas na capital desde o início da execução do projeto, em fevereiro, até 29 de setembro. Desses relatos de violência, policiais militares foram alvo de 220, seguidos por agentes da Polícia Civil (45) e guardas civis metropolitanos (12). As denúncias foram encaminhadas pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) ao Ministério Público, à Defensoria Pública e às corregedorias dos três órgãos de Segurança Pública.
“Alguns dos presos estavam com marcas visíveis da agressão. Olho roxo, perna machucada, camiseta com sangue, nariz muito ferido. Eu acho importante acrescentar que a Polícia Militar acompanha as audiências, e, mesmo assim, os presos tiveram coragem de denunciar o abuso policial, o que nos leva a crer que, provavelmente, aconteceram ainda mais casos, porque outros presos não têm a mesma coragem”, disse a advogada Vivian Calderoni, da ONG Conectas Human Rights, que acompanha as audiências de custódia em São Paulo.
“É fundamental que os autuados em flagrante tenham contato o mais breve possível, em vinte e quatro horas, com o Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública ou advogado particular para que se possa identificar alguma violação aos seus direitos fundamentais”, acrescentou a advogada Vivian Calderoni. Ela destacou que as denúncias envolvem tanto violência física quanto psicológica.
Marcas - Em Minas Gerais, onde o projeto do CNJ é executado desde 12 de agosto, foram realizadas 958 audiências de custódia até 29 de setembro, segundo a Defensoria Pública do estado. Nesse período foram registradas 73 denúncias de agressão policial. Segundo a defensora pública Karina Maldonado, a agilidade da apresentação do preso ao juiz tem sido fundamental para a constatação de marcas da violência no corpo.
“Naqueles casos em que as agressões físicas são visíveis, a Defensoria Pública diligencia para que seja feito o exame de corpo de delito, se esta providência ainda não foi tomada, e encaminhamento de cópia da mídia (vídeo) para a Corregedoria de Polícia. E o caso passa a ser acompanhado pelo Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria", disse a advogada. “Já nos casos em que as agressões físicas não são visíveis ou quando se trata de agressão verbal, havendo identificação do suposto agressor, comunica-se à Corregedoria de Polícia por meio de envio de cópia da mídia ou por meio de ofício. E o caso também passa a ser acompanhado pela Defensoria”, acrescentou.
Já a Defensoria Pública do Espírito Santo informou que a apuração de 24 relatos de violência policial está em andamento no estado, que executa o projeto do CNJ desde maio e realizou pouco mais de 1.600 audiências de custódia. Para a defensora pública Aline Alcazar Barcelos, o caso que mais chamou sua a atenção foi de um homem apresentado ao juiz exibindo ferimentos no rosto.
“O homem estava bem marcado, muito machucado. Ele não estava se sentindo bem e dizia estar ameaçado, temendo represálias. Mas como estava bem marcado no rosto, não tinha como esconder as evidências, ele acabou denunciando a violência policial”, contou a defensora. Segundo ela, a maioria dos casos relatados aponta policiais militares como autores das agressões. Agentes da Polícia Civil também são acusados. “Já vi presos com marcas de coronhadas, de pisão no peito, o rosto ralado”, contou.
Ainda conforme a defensora pública do Espírito Santo, alguns relatos de violência são de difícil verificação. “Os policiais estão batendo de uma forma que eles sabem que não vai marcar o corpo do preso. Alguns presos que relatam violência dizem que os policiais batem neles porque eles são negros ou pardos e as marcas dificilmente aparecem. Eles também falam que foram agredidos com tapões no ouvido, tapa na cabeça, que também não deixam marcas”, afirmou Aline Barcelos.
Outros estados onde os presos denunciaram agressões são o Rio Grande do Sul, com 88 relatos registrados, e Santa Catarina, com 11. "Tomei tapa, chute e empurrão. Fui jogado no chão igual um lixo, igual um animal", denunciou um preso no dia 24 de agosto, durante a primeira audiência de Custódia na capital catarinense, que contou com a presença do presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Ricardo Lewandowski. A investigação do caso está sob acompanhamento da Defensoria Pública estadual. O homem foi autorizado a responder ao processo em liberdade.
Protocolos - Segundo o juiz Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi, coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF), o CNJ está atento à necessidade de melhor capacitar juízes, com o objetivo de prepará-los para receber, processar, encaminhar e adotar providências diante de relatos de violência policial. “A imediatidade do contato entre o preso e o juiz é um indício facilitador para a apuração e repressão dessas práticas”, destacou o coordenador.
Conforme anunciou, o CNJ, por determinação do ministro Ricardo Lewandowski, está preparando uma resolução com o estabelecimento de protocolos para aprimorar o funcionamento das audiências de custódia e a atuação dos magistrados responsáveis por elas. Um dos protocolos vai uniformizar os procedimentos a serem adotados pela magistratura diante de denúncias de tortura e outras formas de maus-tratos aos presos.
Jorge Vasconcellos
Agência CNJ de Notícias
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