Do encontro com o prefeito Fernando Haddad (PT) às batidas policiais quase diárias, nada deixa de ser gravado, editado e documentado por adolescentes e jovens da Favela do Moinho, no centro de São Paulo. A iniciativa será disseminada por bairros da periferia, como Heliópolis, Paraisópolis, Brasilândia e Jardim Pantanal, com o objetivo de filmar com celular ou pequenas câmeras abusos policiais, encontros com autoridades e reintegrações de posse. Logo em seguida, tudo é compartilhado nas redes sociais.
Com R$ 80 mil recebidos de um programa da Secretaria Municipal de Cultura, lideranças da Favela do Moinho compraram três câmeras, tripé, projetor de luz e ilha de edição. Trinta jovens receberam neste ano treinamento para realizar filmagens semiprofissionais com a orientação de líderes comunitários, advogados de ONGs e defensores públicos.
Quando um carro da Polícia Militar entra na ocupação localizada ao lado dos trilhos da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) e embaixo do Viaduto Rudge logo atrás aparecem jovens munidos de câmeras profissionais equipadas com microfones e projetores de luz. São adolescentes como Alessandra de Jesus, de 15 anos, Paulo Ivaldo, de 13, e André Ferreira, de 16, que fizeram parte do projeto de capacitação audiovisual Moinhos de Imagem.
“O problema é que a PM ainda não entende que filmar é um ato legal. O próprio André foi levado outro dia pelos policiais só porque estava filmando uma fiscalização da Subprefeitura da Sé nos bares daqui”, diz o ativista e fotógrafo Caio Castor, de 31 anos, um dos coordenadores da ONG Moinho Vive. “Depois que acabou a fiscalização pegaram o menino e queriam ver o que tinha na câmera dele”, conta Castor.
“O vídeo serve, no Poder Judiciário, quase sempre como prova irrefutável de abusos que não deixam marcas, como um tapa na cara ou uma tortura verbal. E isso é corriqueiro nos bairros mais distantes da capital”, afirma o defensor público Raul de Carvalho Nin, de 32 anos, do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado.
Vice-presidente da União dos Moradores de Paraisópolis, na zona sul, Joildo dos Santos, de 29 anos, também incentiva os jovens a filmar as ações da PM. “Quando você compartilha um vídeo de violência policial na internet, a sociedade inteira passa a fazer a cobrança por uma postura melhor da polícia. Surte bem mais efeito do que antigamente, quando você tinha de ir reclamar para um político amigo ou para uma ONG”, afirma.
Treinamento. Castor, da Favela do Moinho, e Santos, de Paraisópolis, foram convidados para participar de um treinamento da ONG americana Witness (Testemunhas), nesta terça-feira, das 9 às 19 horas, na Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo (Apesp). Fundada em 2001, a entidade passou a ter destaque internacional a partir de 2012, quando começou a incentivar jovens do Bronx, região pobre de Nova York, a filmar policiais que faziam revistas em moradores da área. À época, ainda estava em vigor a política stop and frisk, do prefeito Michael Bloomberg, que consistia em revistar qualquer pedestre ou cidadão em atitude suspeita.
Levantamento da ONG mostrou, em 2013, que 87% dos jovens revistados eram negros e pobres. Em uma campanha batizada de Watching the Cops, a Witness conseguiu massificar o uso dos celulares na gravação de vídeos de ações policiais na mais populosa cidade americana. O mesmo trabalho, em parceria com a Conectas Direitos Humanos, será feito agora com 120 lideranças de São Paulo.
Punição. Para o especialista em segurança pública Bruno Paes Manso, do Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), para se criar uma cultura de uso de vídeos entre os jovens é preciso haver, antes de tudo, punição para os culpados.
“Não adianta incentivar o jovem a filmar a ação policial se nem ele vai ter segurança alguma depois, já que os acusados muitas vezes permanecem soltos”, diz o pesquisador. “É preciso haver a mesma punição que a Justiça americana criou como consenso nos casos de vídeos que mostram claramente a violência da polícia”, afirma Paes Manso.
Estadão
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